Scholastique Mukasonga: A Memória Pessoal e Coletiva das Vítimas do Genocídio de Ruanda

Uma das coisas que nós pouco conhecemos é sobre a diversidade da cultura africana. Eu, por exemplo, não conhecia essa escritora, até ver uma sugestão de leitura no Instagram. Eu poderia ignorar, deixar para lá, afinal, quantas indicações de livros, séries, filmes nós vemos? Não há como dar conta de tudo isso. No entanto, quando vi a indicação do livro A Mulher de Pés Descalços, senti-me tão curiosa que acabei lendo os três livros da autora que figuram, involuntariamente, uma trilogia sobre a história de Ruanda, sob a ótica de Mukasonga, descendente de tutsis e que perdeu quase sua família inteira no genocídio ocorrido no país em 1994.


Ruanda foi um território que sempre despertou o interesse dos exploradores europeus. No entanto, ao chegarem lá, eles não imaginavam que o país possuía uma organização política tão consolidada. Como povos não europeus poderiam ter um sistema tão bem estruturado? De que maneira eles poderiam virar o jogo a seu favor? Foi aí que surgiu a questão étnica como mote. Ruanda abrigava povos distintos que viviam em harmonia, enquanto desempenhavam seus respectivos papéis na sociedade ruandesa, que era liderada por um rei. O rei, de origem tutsi, mantinha a ordem do país, até a chegada dos colonizadores.
"Quando você esquece, está matando as vítimas uma segunda vez".
Hutus e Tutsis sempre conviveram em Ruanda e, antes de os europeus chegarem, não viam as distinções étnicas que começaram a ser apontadas com a chegada dos brancos. Os hutus eram lavradores, cuidavam dos campos e das colheitas, já os tutsis eram pastores e criadores de rebanhos. Ou seja, existia, originalmente, diferenças de ofício. Com a chegada dos europeus, começaram a circular "lendas" sobre a separação entre os dois povos, enfatizando que os tutsis eram mais altos, gigantes, possuíam o nariz afilado e eram quase "brancos". Essa tensão foi introduzida "oficialmente", digamos assim, com a adoção da carta de identidade étnica criada pelos belgas em 1961, dando início aos conflitos étnicos entre os dois povos, que durariam cerca de 30 anos até culminar na morte de mais de 800 mil tutsis, no genocídio de 1994.



Foi dentro desse contexto que Mukasonga viveu sua infância e adolescência. Scholastique nasceu na província de Gikongoro, em 1956. Nessa época, seu pai era muito respeitado e detinha um cargo de confiança, até tudo mudar, quando os Hutus assumiram o poder e começaram a perseguir os Tutsis. Motivados pela carta de identidade étnica, o povo majoritário, como os hutus se intitularam, passaram a oprimir e a perseguir os tutsis, tratando-os como baratas, ou, simplesmente, inyenzi. Durante anos, Mukasonga e sua família viveram momentos de medo e de terror. No entanto, em 1994, data do genocídio, que durou cerca de 100 dias, mais ou menos, Scholastique e o irmão André, não viviam mais em Ruanda há pelo menos 20 anos.
"Um genocídio não se faz da noite para o dia. Leva anos. Em Ruanda, levou 30 anos, de 1960 a 1994. Três décadas em que se fez a manipulação do status dos seres humanos. Eu me lembro de ser tratada não como ser humano, mas como barata".
Aos 62 anos, Scholastique Mukasonga se tornou a escritora mais famosa de Ruanda, ao transformar sua experiência como tutsi em seu primeiro livro, Baratas (Inyenzi ou les Cafards), publicado em 2004, uma década depois do genocídio. Mukasonga apresenta uma tentativa pessoal de compreender o que levou ao massacre de Ruanda. Além disso, Baratas figura o primeiro livro de uma trilogia involuntária, seguida de A Mulher de Pés Descalços (La Femme aux Pieds Nus), publicado em 2008, no qual Mukasonga faz uma homenagem a sua mãe ao retratar a realidade dos tutsis não terem dinheiro sequer para comprar calçados, e finalizada com Nossa Senhora do Nilo (Notre-Dame du Nil), publicado em 2012, em que a autora recria o universo de um liceu de alta classe no qual ela estudou na juventude.


Nos dois primeiros livros, a narradora-personagem se chama Mukasonga. A partir de seus relatos, vamos conhecendo os costumes e as tradições dos tutsis e como eles sobreviveram às privações impostas pelo povo majoritário. Em Baratas, Mukasonga vai descrevendo, a partir de sua visão, todos os acontecimentos em Nyamata, até o dia do genocídio. Quando criança, Mukasonga e a família, juntamente com outras diversas famílias tutsis, foram levados até uma região remota de Ruanda. Em seguida, os pais de Mukasonga migraram para Nyamata, onde se instalaram definitivamente. Lá, Mukasonga ajudava a mãe na lavoura e cuidava dos irmãos menores, enquanto os mais velhos, Alexia e André, frequentavam a escola. 
"Os assassinos quiseram apagar até suas lembranças, mas no caderno escolar que nunca me deixa, registro seus nomes, e não tenho pelos meus e por todos aqueles que pereceram em Nyamata, nada além deste túmulo de papel".
Em A Mulher de Pés Descalços, Mukasonga também é a narradora-personagem, no entanto, o foco do livro é em resgatar as memórias da autora em relação a sua mãe, Stefania, e a todos os esforços que ela fez para salvar seus filhos de um perigo iminente. Tanto em Baratas quanto em A Mulher de Pés Descalços, podemos conhecer a tensão política em Ruanda e como os tutsis eram tratados como sub-humanos, a pior escória de Ruanda. No entanto, para passar uma boa imagem para o mundo, o povo majoritário permitia que alguns tutsis pudessem estudar, por meio de um sistema de cotas. Mukasonga foi uma das poucas que conseguiu estudar no famoso Liceu Nossa Senhora de Cister, o qual é recriado e usado como pano de fundo para a história de Nossa Senhora do Nilo. Em seu terceiro livro, as personagens Virginia e Veronica (tutsis) têm suas vidas usadas como alegorias para explicar como dois povos se tornaram inimigos mortais.
"Quando eu morrer, quando vocês perceberem que eu morri, cubram meu corpo. Ninguém deve ver meu corpo, não se pode deixar ver o corpo de uma mãe".
Apesar de formarem uma trilogia involuntária, digamos assim, é possível perceber nos três livros a necessidade de Mukasonga de resgatar a memória dos seus, visto que, para ela, esquecer é como matar as vítimas pela segunda vez. Há todo um cuidado narrativo nas três obras, sobretudo, com relação aos personagens. Não é apenas a família de Mukasonga que nós conhecemos, mas todos os tutsis que estavam exilados em Nyamata. Pessoas com sonhos, projetos e um futuro pela frente, simplesmente, seres humanos, que por serem vistos como inferiores, foram brutalmente assassinados por seus semelhantes, num dos genocídios mais chocantes da humanidade. Os livros se baseiam em acontecimentos reais e muitas cenas podem ser cruéis demais para leitores mais sensíveis, no entanto, torna-se necessário conhecer a obra de Scholastique Mukasonga como um registro de uma Ruanda que nós não conhecemos, isto é, de uma Ruanda antes do genocídio. No Brasil, os livros foram publicado pela Editora Nós. Super recomendo a leitura.

Comentários

  1. Quando vc está em paz aí chegam os forasteiros para infernizar e distruir vidas.

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    1. Os brancos sempre cuidando dos seus interesses, independente de quem saia perdendo... colonizar, aculturar, destruir. Basicamente isso. Muito triste e revoltante.

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