100 Escovadas Antes de Ir para a Cama - Melissa Panarello

Na época em que este livro foi publicado, em 2004, eu tinha apenas algo entre 12-13 anos. Ouvi todo o burburinho em torno do livro, sobretudo, da polêmica etc. O que me aproximava dessa garota eram alguns anos de diferença, mas meus interesses eram outros, tanto que só vim a ler esse livro, recentemente. E na segunda tentativa. Mas eis que leio e, em um dia, devoro todos os segredos de Melissa.


Título Original: 100 Colpi di Spazzola di Andare a Dormire
Autora: Melissa Panarello
Gênero: Biografia, Memórias
Editora: Objetiva
Páginas: 157 p.
Ano de Publicação: 2004

A história, narrada pela personagem Melissa em forma de diário, se passa durante os 15-16 anos de uma garota italiana da região de Catânia. Apesar de participar de coisas inimagináveis para uma garota da sua idade, ninguém estava preparado para saber, como um tapa na cara, as suas aventuras sexuais juvenis. Em um período de um ano, Melissa experiencia diversas práticas sexuais. O que fez muita gente taxar o livro de raso e sem sentimento. Outros diminuem a obra classificando-a como literatura erótica, rótulo que a própria autora nega veementemente.

As coisas ganham ainda mais repercussão quando a autora afirmou que ela não só emprestou seu nome à personagem como afirmou que viveu todas as experiências narradas, alterando apenas alguns nomes e datas. Mas se tratando de uma produção literária, mesmo sendo uma pseudo autobiografia, é possível identificar elementos de ficcionalidade, sobretudo, quando a personagem faz uso recorrente de linguagem figurada e literária. Não é um simples diário, pois Melissa tem a necessidade de retomar alguns episódios em suspenso apenas para que o leitor não perca nada, preocupação pouco comum em diários reais.


Ao longo do livro, vamos conhecendo uma garota que sempre teve uma curiosidade e desejo sexuais naturais, mas que passa a desacreditar do amor, porque foi usada e abusada pela pessoa que acreditava estar apaixonada, Daniele. Em vários trechos do livro, podemos perceber o quanto Melissa sofre e, embora se submeta à maioria das coisas de que participa, ela apenas acredita que merece se punir, que merece passar por toda aquela humilhação.
"A solidão talvez esteja me destruindo, mas já não me dá medo. Eu sou a melhor amiga de mim mesma, eu nunca iria me trair, me abandonar. Mas talvez me machucasse, me machucar talvez sim. E não porque isso me dê prazer, mas porque quero me punir de alguma maneira. Mas como é que faço para me amar e me punir ao mesmo tempo? É uma contradição, diário, eu sei. Mas nunca o amor e o ódio estiveram tão perto, tão cúmplices, tão dentro de mim".
Melissa anseia encontrar alguém que a veja como é e não que só deseje o seu corpo sexualmente. Entretanto, enquanto não encontra o seu príncipe encantado, ela vai se afundando mais e mais nessa busca humilhante e degradante. Seu único ritual de purificação é escovar os cabelos 100 vezes antes de dormir, o que demonstra o seu lado mais infantil e vulnerável.
"Depois me abandonei em cima da cama e senti meu corpo se entorpecendo. Na escrivaninha do quarto estreito eu via o display do meu celular lampejando e sabia que estavam me ligando de casa, já eram duas e meia da manhã. Nesse meio tempo alguém entrou, estendeu-se em cima de mim e me comeu; um outro o seguiu e apontou o pênis para a minha boca. E quando um terminava, o outro descarregava em cima de mim o seu líquido esbranquiçado. E os outros também. Suspiros, lamentos e grunhidos. E lágrimas silenciosas. Voltei para casa cheia de esperma, com a maquiagem borrada, e minha mãe me esperava dormindo no sofá". 
É evidente, na leitura do livro, a forte influência que os contos de fada exercem no imaginário romântico das meninas. Mesmo sendo uma clandestina nesse universo sexual e orgíaco, Melissa deseja apenas um amor tranquilo, que lhe salve, lhe resgate de si mesma. E é nesse momento que vemos transbordar os sentimentos de culpa e mácula destinados aos corpos femininos que se entregam aos prazeres da carne. A própria Melissa acredita não merecer ser salva.
"Quando estou em casa, entro na Internet. Procuro, exploro. Busco tudo aquilo que me excita e me faz ficar mal ao mesmo tempo. Busco a excitação que nasce da humilhação. Busco o aniquilamento. Busco os indivíduos mais bizarros, aqueles que enviam fotos sadomasoquistas, aqueles que me tratam como uma verdadeira puta. Aqueles que querem descarregar. Raiva, esperma, angústias, medos. Não sou diferente deles. Meus olhos ficam com uma luz doente, meu coração bate desenfreadamente. Acho (será que me iludo?) que posso encontrar nos meandros da rede alguém disposto a me amar. Não importa quem seja: homem, mulher, velho, jovem, casado, solteiro, gay, transexual. Todos".
Das poucas críticas que li sobre o livro, muitos baseiam seus comentários nas impressões ou nas expectativas frustradas que tiveram da leitura. Para tentar esclarecer alguns pontos, é importante mencionar que a história é narrada em 1ª pessoa. Melissa seleciona e manipula o que quer contar, mas fica subentendido a sua péssima relação com a família e com as outras pessoas. Melissa não tem muitos amigos, aliás, nenhum amigo que seja mencionado por tanto tempo. Além disso, sua postura indiferente e resignada a tudo o que acontece com ela são reflexos da sua baixa autoestima e complexo de inferioridade, já que ela se sente sempre suja, impura cuja única forma de se punir é permitir que lhe invadam e lhe violentem simbólica e fisicamente.
"Na casa de Ernesto, os segredos não foram muitos. Confessei a ele que aquilo que tinha acontecido fez nascer em mim o desejo de ver dois homens um dentro do outro. Quero ver dois homens trepando, é isso. Ver os dois se comendo como até agora me comeram, com a mesma violência, com a mesma brutalidade".
Para alguns, o livro é muito fantasioso, mas não podemos afirmar o que é verdade ou mentira, afinal, as linhas que separam o que é autobiográfico do que é ficcional são muito tênues. Além disso, Melissa era só uma jovem de 18 anos quando o livro foi publicado mundialmente, mesmo sendo maior de idade, ainda é chocante para a sociedade aceitar que jovens estejam experimentando o sexo cada vez mais cedo. Outro dado relevante é que todos os parceiros de Melissa são mais velhos e mais "experientes" do que ela.
"Como se o que fizesse mal fosse só o haxixe. Eu poderia fumar quilos e mais quilos desde que não sentisse mais essa estranha sensação de vazio, de nada. É como se estivesse suspensa no ar admirando o que fiz ontem. Não, aquela não era eu. Era a outra, a que não se ama, deixando-se roçar por mãos ávidas e desconhecidas; era aquela que não se ama recebendo o esperma de cinco pessoas diferentes e sendo contaminada até a alma, onde a dor ainda não existia. A que se ama sou eu: eu sou aquela que hoje à noite, mais uma vez, deixou os cabelos brilhantes depois de escová-los cem vezes com todo o cuidado, aquela que reencontrou a maciez fresca dos lábios. E que se beijou, dividindo consigo mesma o amor que ontem lhe tinha sido negado".
Não se pode confundir o desejo exibicionista/voyeurista de Melissa com a responsabilidade pelo que ela sofre. Ela pode ter desejos e sofrer diversos abusos, e, embora pareça "consentir", os envolvidos sabem que ela tem 15 ou 16 anos de idade e eles até gostam disso. Sentir desejo é natural do ser humano, ainda mais quando se é adolescente e se quer experimentar tudo ao mesmo tempo. No entanto, querer conhecer o sexo e os prazeres da carne não tornam Melissa culpada pelos abusos sofridos, afinal de contas, meninas são apenas meninas e aqui, conscientemente ou não, a protagonista deixa claro o desejo de reverter a sua situação, o que é naturalmente plausível, mas seus "parceiros" usam e abusam da sua ingenuidade, da sua vulnerabilidade e de seu corpo.

O que torna esse livro, a priori, despretensioso, interessante é a forma nua e crua que Melissa descreve o que aconteceu com ela. Outra coisa é que a personagem tem momentos de incerteza, confusão e insegurança. Ela não chega a dizer explicitamente por que faz aquilo consigo mesma se ela é a pessoa que mais a ama no mundo, mas ela dá pistas da sua carência, de seus medos e anseios. Melissa quer ser adulta, mas também quer ser menina. Ela vive esse conflito no livro. Entretanto, os homens só veem o seu corpo de menina-mulher desejando-o. O tal desejo pelas "novinhas" não é novo e nem exclusivo de um único lugar, infelizmente. Melissa pode ser insólita, pode ser dissimulada, pode ser verdadeira ou pode não ser coisa alguma, isso tudo é intencional dentro da narrativa. O seu relato é importante porque nos faz pensar, quantas Melissas com suas histórias particulares estão por aí sendo usadas, manipuladas e desacreditadas pelas pessoas, pela família, pela sociedade? Quantas Melissas anônimas estão sofrendo por aí enquanto você lê essa resenha?

Nota: ⭐⭐⭐⭐⭐

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