Durval Discos (2002)

O que dizer sobre esse filme? Durval Discos é uma das raridades do cinema nacional. Escrito e dirigido por Anna Muylaert, Durval Discos é um daqueles filmes que te fazem sentir a respiração ofegante, que te dão a sensação de estranhamento, surrealismo e claustrofobia, mas no final, você respira fundo, está tudo bem... era essa a intenção. [Pode conter spoiler].


Título Original: Durval Discos
Direção/ Roteiro: Anna Muylaert
País de Origem: Brasil
Gênero: Comédia, Drama, Thriller
Duração: 96 min
Ano de Lançamento: 2002

Durval (Ary França) é um simples vendedor de discos de vinil num subúrbio paulista dos anos 90. Entretanto, é nessa época que os CDs começam a surgir e consequentemente surge a decadência dos discos. No entanto, Durval insiste em continuar vendendo vinis, mantendo seu estereótipo underground alternativo, conservando ainda o estilo hippie rock'n'roll dos anos 80 (se é que posso descrevê-lo assim - risos).

Apesar da idade, Durval ainda vive com sua mãe idosa, dona Carmita (Etty Fraser), uma senhorinha excêntrica que oscila entre a sanidade e a loucura. Entretanto, a vida dessas duas personagens muda completamente com a chegada de Célia (Letícia Sabatella), a nova funcionária. O que eles não poderiam imaginar é que Célia deixaria com eles a sua filhinha de 5 anos, Kiki (Isabela Guasco), e que essa menina traria com ela uma enxurrada de problemas.


Nesse filme de Anna Muylaert, mesmo que não seja o tema principal, é possível perceber a característica que norteia todo o seu trabalho: a crítica social nas relações trabalhistas (tema que ela amadureceu bastante em Que Horas Ela Volta?), quando Durval e a mãe decidem contratar uma ajudante para os serviços domésticos. Mas como eu disse, esse não é tema principal do filme. Durval Discos transita e brinca com o espectador, tira sarro da sua cara com uma trilha sonora que acrescenta informações extras ao enredo e levanta dúvidas entre o real e o surreal.

Regado a bastante humor negro, vemos um filme que traz não só no título, mas durante todo o seu desenvolvimento, a dualidade da história, dos personagens e dos acontecimentos. Afinal, todo disco tem um lado A e um lado B. Todos os personagens têm seus dois lados. E o filme também. Tudo começa a ter uma reviravolta, quando Durval e Carmita encontram Kiki sozinha no quarto da empregada. Como aquela criança chegou ali? E quando Célia a levou sem que ninguém a tivesse visto?



Kiki surge como a reviravolta lúdica do filme. A casa que antes era apática, sufocante, ganha outra atmosfera. Kiki passa a suprir a carência afetiva de Carmita, que embora seja muquirana durante todo o início do filme, para Kiki ela é capaz de tirar todo o dinheiro da poupança. De forma que para satisfazer as vontades da menina, Carmita lhe compra um cavalo.

A figura do cavalo é bastante simbólica e para o filme traz uma simbologia ainda maior. Cavalo remete à liberdade, a movimento, desejo. Temos um Durval totalmente dependente da mãe e uma mãe totalmente dependente de Kiki (que é a única que não depende de ninguém, sua única fixação é pelos cavalos). Diante desse contexto, o cavalo surge como o contraponto, a ironia dessa clausura emocional e física, pois praticamente todo o filme se passa dentro da casa da mãe e do filho.



Quando Durval e a mãe descobrem o verdadeiro segredo por trás da origem de Kiki, a história toma rumos sombrios. O cavalo dentro da casa, o mundo de ilusões e conto de fadas criado por Carmita para manter Kiki ao seu lado e a devoção da mãe de Durval pela criança vão ser os elementos que servirão de estopim para que a simbologia do cavalo funcione, ou seja, para que as relações de dependência e de confinamento sejam quebradas.

Durval Discos é um filme, a priori, despretensioso. À medida que você assiste, a história vai tomando forma, a vida de mãe e filho, de pacata, torna-se frenética, inconstante. Não há limites entre o real e o irreal, e isso é muito bem trabalhado no filme, nos personagens, nas simbologias. Além do não-limite entre realidade e surrealidade, vemos o não-limite dos espaços físicos. Não há separação entre a casa e a loja, o que pode ser interpretado como o fato de Durval nunca ter cortado o cordão umbilical com a sua mãe.



Para brincar ainda mais com o espectador, Durval representa a figura da resistência do antigo em relação ao novo, como na música de Belchior, Como Nossos Pais. Entretanto, até que ponto pode-se de fato resistir ao inevitável? Isso é tratado em Durval Discos de duas formas: a inevitável ruptura das dependências afetivas e emocionais e o inevitável avanço da tecnologia. Um filme muito interessante, uma pérola do nosso cinema que vale a pena ser visto e revisto. Super recomendo.

Nota: ⭐⭐⭐⭐⭐

Comentários