Sem sombra de dúvidas, um dos melhores livros que eu li esse ano. Não é à toa que Pilar Quintana é uma das vozes mais importantes da literatura latino-americana contemporânea. O que ela consegue fazer numa narrativa de 160 páginas é absurdamente incrível. Eu precisei de alguns meses para conseguir escrever essa resenha sem deixar nenhum detalhe importante de fora. O tanto que esse livro me provocou sensações e sentimentos diversos só evidencia o poder que a literatura tem.
Título Original: La Perra
Autora: Pilar Quintana
Tradução: Lívia Deorsola
Gênero: Romance
Editora: Intrínseca
Páginas: 160 p.
Ano de Publicação: 2020
Desde muito cedo, a vida de Damaris é marcada por tragédias e, apesar da companhia do marido, Rogelio, ela carrega uma solidão que talvez não existisse se tivesse tido um filho. Para ocupar os seus dias, Damaris cuida da casa de veraneio da família Reyes, que está abandonada há muitos anos. Seguindo a mesma rotina, a sua vida parece destinada à mesmice até o dia derradeiro, mas eis que, num rompante de euforia, nossa heroína decide adotar uma cachorra da ninhada de uma vizinha, o que acaba se tornando a oportunidade para Damaris desviar um pouco o foco das tentativas frustradas de engravidar. À medida que vai cuidando do animal, instintos protetores, violentos e profundos vão despertando em Damaris emoções que supostamente viriam apenas com a maternidade, sendo assim, a intensidade dessa relação passa a beirar o amor e o ódio, fazendo com que a simples presença da cachorra faça a vida de Damaris ganhar ou perder o rumo de vez.
A Cachorra é o livro de estreia da escritora colombiana Pilar Quintana. Por muitos anos, Pilar morou em Juanchaco, uma vila litorânea extremamente pobre e humilde da Colômbia. Coincidência ou não, o cenário de A Cachorra se passa em uma pequena cidade de veraneio, abandonada pelo tempo e pelos turistas, fazendo com que seus moradores sobrevivam à modorra dos dias quentes e extremamente úmidos, sem que haja uma perspectiva de mudança ou de dias melhores. Além disso, a maternidade tem uma forte influência na narrativa desse livro, visto que Pilar começou a escrevê-lo no celular, enquanto amamentava seu primeiro filho. Mãe de primeira viagem aos 40 anos, ela começou a se perguntar se o amor de mãe era incondicional e, buscando responder essa pergunta, ela escreveu A Cachorra, mostrando que mães também desejam amor e têm seus problemas e desentendimentos com os filhos, afinal de contas, quem pode dizer o que realmente se passa no coração de alguém?
Sentia que a vida era como a angra e que ela precisava atravessá-la caminhando com os pés enterrados no barro e a água até a cintura, sozinha, completamente só, em um corpo que não lhe dava filhos e só servia para quebrar coisas.
Depois de tomar a decisão de adotar a cachorra, Damaris passa a depositar todo seu amor e atenção em Chirli, tratando-a como se fosse o seu bebê recém-nascido. O cuidado depositado na cachorrinha desperta uma certa desconfiança em Rogelio, que passa a observar mais amiúde a relação da mulher com a cadela. No início, o marido não entende todo o chamego da esposa com o animal, mas resolve ignorar, enquanto aquilo não for um problema. No entanto, o relacionamento entre as duas vai tomando um rumo diferente a partir do momento em que a cachorra se perde no bosque e retorna depois de semanas para casa. Aliviada pelo retorno da sua cadela, Damaris volta a depositar todo seu amor incondicional no animal, até que a cachorra volta a fugir várias e várias vezes depois, no entanto, as coisas mudam drasticamente quando, num dos retornos da cachorra, Damaris percebe algo de diferente: Chirli estava prenha. Sentindo-se magoada e traída, Damaris passa a detestar a companhia da cachorra, pois ela se torna um lembrete constante de sua esterilidade, fazendo com que todo amor e cuidado dispendido para cuidar da cachorrinha fosse algo antigo e distante.
Damaris manteve a cachorra amarrada durante uma semana. A corda era longa e ela podia buscar sombra à medida que o sol se movia e chegar até a grama que rodeava o quiosque para fazer suas necessidades. Damaris enchia sua tigela de água sempre que ficava vazia e lhe dava comida junto à coluna à qual estava amarrada. À noite, deixava a luz acesa como sempre tinha feito, para evitar que os morcegos a mordessem.
Enquanto filhote, a cachorra exerce a função ideal do filho que Damaris nunca teve, já que durante esse período, Chirli necessita de cuidados e de atenção, fazendo com que a protagonista sinta - à sua maneira - as "obrigações" e os deleites da maternidade. No entanto, como todo filho, eles crescem e se tornam indivíduos autônomos e independentes e é aí que começa o drama de Damaris. Depois que Chirli foge pela primeira vez, todos acreditam que ela não voltaria mais, entretanto, contra todas as possibilidades, o animal retorna para casa, porém, inicia um ciclo de fugas e escapadas longas e breves. A ligação entre Damaris e Chirli acaba se mostrando frágil, porque Damaris não consegue aceitar a mudança dessa relação. Chirli surge prenha e o amor que ocupava o coração de Damaris se transforma em aversão e rancor. Chirli se torna o pesadelo de todos os medos e anseios da protagonista, despertando nela o ciúme e o ressentimento pela crueldade do destino e da natureza. Ao longo do livro, vamos percebendo a dor de Damaris, que passa a viver em constante conflito. Como continuar amando Chirli, quando ela não é mais aquilo que eu sempre quis? Como continuar querendo esse animal ao meu lado, quando ele representa tudo o que mais me dói? Com maestria, Pilar nos guia para um dos desfechos mais impactantes que essa história poderia ter. Uma obra-prima da literatura contemporânea sul-americana que vale super a pena conhecer. Recomendo.
Nota: ⭐⭐⭐⭐⭐
Comentários
Postar um comentário