Eu conheci esse livro, quando estava pesquisando alguns títulos no site da editora DarkSide. É incontestável o trabalho gráfico das capas dos livros que eles publicam e eu estava apenas tentando achar algum título que me interessasse. Não que eu seja uma pessoa mórbida e isso nada tem a ver com o fato de eu amar os poemas de Augusto dos Anjos, mas quando vi o título Confissões do Crematório eu soube imediatamente que precisava ler esse livro.
Título Original: Smoke Gets in your Eyes: and the Other Lessons from the Crematory
Autora: Caitlin Doughty
Tradução: Regiane Winarski
Gênero: Biografia, Memórias
Editora: DarkSide Books
Páginas: 256 p.
Ano de Publicação: 2016
Confissões do Crematório reúne histórias reais do dia a dia de Caitlin como funcionária em uma casa funerária, além de trazer curiosidades, fatos históricos, mitológicos e filosóficos sobre o que é feito com um corpo após a morte. Pode parecer um livro mórbido à primeira vista, mas Caitlin consegue ser tão divertida em suas memórias, que é impossível não rir do seu humor ácido. Além disso, pode não ser o sonho de todo mundo, mas a havaiana Caitlin conseguiu um emprego como operadora de crematório, na Westwind Cremation & Burial, e, durante esse tempo, ela barbeou, maquiou e penteou cadáveres. Além de moer ossos, raspar os restos mortais das chapas de cremação, drenar sangue dos corpos e andar por ruas e corredores com caixas cheias de cabeças decepadas e de bebês mortos.
"Uma menina nunca esquece seu primeiro cadáver".
Caitlin Doughty sempre teve um fascínio por tudo que estivesse ligado à morte, sobretudo, após presenciar a morte de uma criança que caiu do 2º andar do shopping e constatar que as pessoas morriam, aliás, que crianças também morriam. Todo esse medo e fascínio a fizeram procurar, espontaneamente, por um emprego em uma funerária. Ela foi contratada e durante alguns anos conheceu a realidade por trás da indústria funerária. Pois é, meus amigos, se você não sabia disso, fique sabendo agora. A morte é um negócio bastante lucrativo e Doughty não hesita em falar sobre isso, o que me fez gostar ainda mais da sua franqueza no livro. Além disso, a autora também tenta desmistificar o conceito de morte, nos fazendo conhecer diferentes concepções sobre como os corpos são tratados, dependendo da cultura da qual o morto fazia parte.
É importante ter em mente que Confissões do Crematório não só apresenta situações que aconteceram com a Caitlin, como também traz a visão de várias culturas de diferentes povos em relação à morte e ao trato com seus mortos. Então, não se assuste se, de repente, você se deparar com a descrição de algum povo que ao invés de enterrar os seus entes queridos, acreditava que o melhor a se fazer era devorá-los, literalmente, para que seus espíritos pudessem descansar em paz. Sendo assim, mantenha sua mente aberta para o que der e vier - risos.
"Nós não conseguimos fazer o descarte dela ser limpo, apesar de todas as ferramentas da indústria moderna da morte, das centenas de milhares de dólares de maquinário industrial. Eu não sabia se devíamos estar nos esforçando tanto pela morte perfeita. Afinal, “sucesso” significava utilizar um monte de plástico e fios para apresentar o cadáver idealizado. “Sucesso” significava cadáveres sendo retirados de famílias por profissionais cujo emprego não era ritual, mas pura ofuscação para esconder a verdade do que os corpos são e o que os corpos fazem. […] A morte devia ser conhecida. Conhecida como um árduo processo mental, físico e emocional, respeitada e temida pelo que é".
Doughty desejava trabalhar no ramo funerário para ter experiência suficiente para a abrir a sua própria funerária. Ao falar sobre o que ocorre dentro de um crematório, a autora faz alusões aos rituais que a própria família realizava com seus mortos, costumes que eram comuns e passaram a ser vistos com aversão quando o serviço funerário se popularizou e tornou o embalsamamento a prática mais adequada e asséptica de se lidar com um morto. Caitlin põe em xeque como a sociedade americana passou a "empurrar" seus mortos diretamente para que as funerárias os higienizassem. Surgem, portanto, diversos questionamentos sobre o luto, afinal de contas, se você não vela pelo seu morto (o que para nós é super normal, mas nos EUA não é), perde-se a oportunidade de se despedir do ente querido e de se poder lidar com a perda de forma mais saudável.
"O hospital era um lugar onde os moribundos poderiam passar pelas indignidades da morte sem ofender a sensibilidade dos vivos. […] O mundo industrializado estabeleceu sistemas para impedir esses encontros desagradáveis com os mortos. Nesse exato momento, cadáveres seguem por estradas e rodovias em vãs brancas comuns como a dirigida por Chris. Corpos atravessam o planeta nos compartimentos de carga dos aviões enquanto passageiros de férias viajam em cima. Nós colocamos mortos embaixo. Não só debaixo da terra, mas também debaixo de tampos falsos em macas falsas de hospital, dentro das barrigas das aeronaves e nas profundezas de nossa mente consciente".
Não é à toa que a morte se tornou uma indústria bastante lucrativa nos Estados Unidos. Não precisar lavar o corpo dos seus mortos pode ser um grande alívio, afinal, quem está preparado para lidar com o livor mortis da sua mãe ou do seu pai? Deixa isso para o serviço funerário. E está tudo bem. Caitlin não critica isso, até porque ela faz parte dessa indústria, mas ela desejava mostrar para as pessoas que a morte não era algo feio ou sujo, mas algo natural. No entanto, ao conhecer os pormenores de um crematório, ela percebeu que a morte perde todo seu caráter de naturalidade, quando é mascarada por meio de camadas e mais camadas de maquiagem, supercolas e formol. Ou seja, a morte não é um processo limpo e nem bonito, todavia não precisa ser repugnante e é isso que Doughty tenta deixar claro.
"A ignorância nada mais é que uma forma mais profunda de pavor".
O que me fez gostar desse livro foi, principalmente, o fato de alguém falar sobre a morte de forma honesta e real, como se ela não fosse algo assustador, até porque o que é assustador mesmo é a nossa ignorância sobre o assunto. Além disso, a autora expõe a maneira higienista e plastificada com a qual a indústria funerária transforma os mortos em bonecos em conserva, como se a decomposição fosse um mal a ser combatido, o que só faz sentido se você quer fazer de um morto um objeto mais aceitável após a morte, o que é um debate bastante válido. Além do mais, lidar com a mortalidade, mais do que uma noção espiritual ou religiosa ou meramente biológica, também é uma questão cultural. A cultura de um povo pode transformar a morte em algo belo, natural e aceitável como também pode transformá-la em algo repugnante e assustador. No entanto, a ignorância e o medo do desconhecido fazem muito mais estragos, por isso, eu recomendo que vocês leiam esse livro, garanto que será uma experiência ímpar. Super recomendo.
Nota: ⭐⭐⭐⭐⭐
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